O Governo pretende aprovar uma iniciativa legislativa que permite adjudicar sem concurso público obras até cinco milhões de euros e bens e serviços até 200.000 euros, tanto a nível nacional, quanto local.
Atacar urgentemente a crise é a justificação oficial. Que ela, a crise tem de ser atacada, ninguém tem dúvidas. A questão está em avaliar-se se é desta forma que se lá chega…
Aparentemente, e no plano teórico, todas as medidas desburocratizadoras e que apontem para a simplificação de métodos e agilização de processos são correctas e bem-vindas.
Só que, sobram razões para colocar outras questões relevantes, relativamente a esta medida.
Desde logo, porque tal intenção não aparece rodeada das cautelas adequadas, tais como, a possibilidade de qualquer cidadão fazer buscas por entidade adjudicante, empresa, valor, tipo de contrato e tipo de actividade.
Estas, entre outras, evidentemente!
Se tivermos em conta que todos os relatórios elaborados pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária demonstram que a maioria dos processos de investigação, sobre eventuais actos de corrupção, favorecimento ou gestão danosa - incluindo aqueles que abortam antes da conclusão – se situam exactamente nesta área da Administração Local, fácil é antever que tal iniciativa legislativa pode contribuir decisivamente para agravar este quadro nada dignificante para o poder local!
Suspeitas, sinais de denúncias (comprovadas ou a comprovar), favorecimentos, falta de transparência e de lisura em negócios que envolvem a realização de obras públicas, povoam o imaginário da população. É evidente que, quando a maioria absoluta, segundo os relatórios divulgados, de processos desenvolvidos e em desenvolvimento na PJ e MP, se relacionam com a Administração Autárquica, devemos tomar todas as medidas e cuidados para inverte este quadro.
Permitir que, por ajuste directo – sem concurso público - se adjudiquem obras de tão elevados montantes é deixar caminho livre para gerar apetites a actos menos transparentes e de favorecimento.
É, por isso, abrir as portas à corrupção e criar condições na Administração Pública designadamente local para actos pouco transparentes esvaziando o conceito de abrir oportunidades iguais para todos.
Mesmo que a decisão de adjudicar esta ou aquela obra se enquadre numa lógica de racionalização, mesmo que a entidade escolhida preencha melhor que a concorrência os requisitos técnicos e administrativos exigíveis, a avaliação popular pode enfermar sempre de desconfiança e descrédito associados.
Na política, como na gestão da coisa pública, “o que parece é”.
Por isso, é que, não basta à mulher de César ser séria. Tem também de parecê-lo!
Numa conjuntura em que os cidadãos se afastam da política, pensam mal dos políticos, detestam os aparelhos partidários e, na esmagadora maioria desconfiam da Administração Pública, não será boa política, para a melhorar a imagem dos titulares de cargos, criar actos e/ou medidas que alimentem nos cidadãos dúvidas, equívocos abrindo espaços a apreciações depreciativas que poderão afastar ainda mais as pessoas da vida política e da vida cívica.
Há políticos e gestores públicos honestos, rigorosos, com critérios de gestão exigentes que utilizam dinheiros públicos de forma transparente, e indiscutível.
Mas há também aqui ou ali situações que contradizem este princípio – “o hábito faz o monge”.
Criar situações condicentes à dúvida, falta de transparência e rigor, na coisa pública é sempre abrir caminho a especulações e muitas vezes aguçar o apetite para actos menos convenientes e até repugnantes.
Tenho larga experiência na administração pública e particularmente na administração local. É na base dessa experiência e do conhecimento da realidade existente no panorama nacional que considero que o Governo e o PS fazem mal, muito mal se persistirem neste caminho.
É que, nem a aproximação de eleições legislativas e autárquicas justificam todos os meios.
Narciso Miranda
nm@narcisomiranda.com